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Cooperativas em Rojava
O nosso cooperador António Orvalho traduziu um texto sobre o trabalho das cooperativas (sobretudo agrícolas, mas também de outras áreas) no Norte e no Leste da Síria (Rojava). Este texto foi traduzido e publicado com o objectivo de dar visibilidade solidária para com o projecto de construção da Região Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES), região também chamada de ROJAVA (que significa OESTE em curdo kurmanji – Curdistão Oeste).
Para saber mais, visitar a Plataforma de Solidariedade para com os Povos do Curdistão e RiseUp4Rojava – Portugal.
Cooperativas no norte e no leste da Síria – Desenvolvendo uma nova economia em ROJAVA
Actualmente, o norte e o leste da Síria (NES) enfrentam enormes dificuldades económicas: inflação galopante, um embargo parcial, guerra e esgotamento de recursos pela ocupação das forças turcas em Sere Kaniye, Tel Abyad e Afrin. Neste contexto de crise, o NES está a desenvolver um modelo económico que visa a auto-suficiência e sustentabilidade. O programa económico da Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria (AANES) apresenta-se como uma alternativa às economias capitalistas. O objetivo é estabelecer uma economia social democrática, baseada no cooperativismo, que mova a sociedade para uma economia mais comunal.
O que define uma cooperativa, em comparação com uma empresa privada, é que ela pertence àqueles que nela trabalham. As cooperativas procuram o lucro, mas o mesmo é distribuído entre os associados (já que são, idealmente, os proprietários) ou utilizado no investimento de actividades futuras. No caso do NES, as cooperativas também atendem directamente as necessidades da população local, sem comercializar a sua produção, e apoiam organizações civis.
As mulheres lideram a construção de uma economia voltada para a sociedade, elas constroem as cooperativas. As cooperativas são, ao lado das comunas, vistas como o segundo pilar da administração democrática.
Karker, co-presidente do Centro de Cooperativas de Heseke
uando as regiões do que hoje é o NES ganharam autonomia do governo de Assad em 2012, elas herdaram uma economia baseada em monoculturas agrícolas. Os campos de trigo dominaram a região oriental de Jazira e as oliveiras a região ocidental de Afrin.
O governo de Assad pouco se esforçou para desenvolver qualquer indústria no NES – nem mesmo moinhos para moer o trigo – já que o único papel económico dado ao NES era fornecer matéria-prima para o resto do país. A maioria das terras cultivadas pertencia ao governo sírio e, posteriormente, foram adquiridas pelas estruturas do governo autónomo agora conhecido como AANES. De acordo com os princípios democráticos de base da AANES, partes dessas terras aráveis foram entregues às comunas locais, que se encarregaram de constituir cooperativas para cultivar a terra, diversificar as culturas e produzir e priorizar novas formas de produção para atender às necessidades da população local. Esse legado económico permitiu o desenvolvimento de cooperativas agrícolas, que hoje constituem a maior parte das cooperativas do NES. Mas as cooperativas também se desenvolveram em outras áreas económicas: principalmente padarias, mas também têxteis, produção de lacticínios, pequenas oficinas e até mesmo uma mina de sal.
Em consonância com o papel primordial da luta de libertação das mulheres no projecto político da AANES, as cooperativas de mulheres são promovidas pelos Centros Cooperativos existentes em todas as regiões. São igualmente promovidas pela Aboriya Jin, o braço económico da Kongra Star, a organização “guarda-chuva” do movimento das mulheres no NES. Estas cooperativas têm como objectivo criar oportunidades de emprego para as mulheres e apoiar a sua independência económica, no âmbito da economia coletiva.
O panorama diversificado das cooperativas do NES
As cooperativas no NES variam em termos de dimensão e ramo de actividade, mas também por tipo. Algumas são cooperativas de trabalhadores, que produzem um bem ou prestam um serviço e obtêm um lucro a ser distribuído entre os associados. Outras são cooperativas de serviços, que são um tipo especial de cooperativa de consumo: o capital financeiro é reunido pelos cooperantes para montar um serviço à comunidade, que é prestado directamente sem ser comercializado. Isso é feito de forma comum para comprar um gerador eléctrico movido a gasóleo para um bairro ou aldeia, que pode fornecer energia eléctrica quando existe uma falha na energia fornecida pela rede.
Devido ao sistema político descentralizado da AANES, a realização de uma avaliação abrangente das cooperativas existentes no NES é um desafio. Nenhum órgão central recolhe informações sobre todos os tipos de cooperativas em todo o NES. As cooperativas são desenvolvidas no nível mais local, as comunas, com o apoio de diferentes organismos: o Centro de Cooperativas de cada cantão ou região, os Comités de Economia dos Conselhos Femininos locais e a Aboriya Jin.
Além disso, as incursões militares e os ataques do estado turco continuam a invadir um sistema que está ainda na sua infância. O território entre Sere Kaniye e Tal Abyad era uma das terras aráveis mais ricas do NES e também abrigava a maior concentração de cooperativas agrícolas da região. Mais de 12 000 hectares estavam em uso por cooperativas agrícolas, com o desenvolvimento de outras cooperativas relacionadas às suas atividades. A maioria dessas cooperativas foi destruída, abandonada ou saqueada após a invasão e ocupação em outubro de 2019 (abaixo descritas mais detalhadamente).
No entanto, ao observarmos o nível regional e o trabalho dos órgãos de economia das mulheres, podemos ter uma ideia da extensão da economia cooperativa no NES. A região de Jazira – uma das sete regiões oficiais do NES – abriga o maior número e variedade de cooperativas da AANES em 2020. Isso deve-se ao facto do sistema da AANES estar implantado em Jazira há mais tempo do que em outras regiões do NES, e de que grandes extensões de Jazira são terras aráveis.
Os Centros de Cooperativas em Jazira apoiam cerca de 40 cooperativas de trabalhadores em ambos os cantões da região, Qamishlo e Heseke. Uma cooperativa normalmente incorpora entre 5 e 10 famílias. 23 estão localizadas no cantão de Qamishlo, das quais 13 são cooperativas agrícolas, cultivando 874 hectares de terra. As demais cooperativas actuam principalmente no fabrico e produção de roupas ou prestação de serviços de costura. A situação varia fortemente de região para região: a região do Eufrates, por exemplo, tem muito menos cooperativas do que Jazira.
Quanto às cooperativas de mulheres trabalhadoras estabelecidas pela Aboriya Jin, existem mais de 50 em todo o NES. 32 delas são cooperativas agrícolas (18 delas localizadas somente na região de Jazira). As outras cooperativas são padarias, lojas de roupas, restaurantes ou oficinas de produção de conservas. Cerca de 1500 mulheres trabalham nessas cooperativas, das quais cerca de 1000 trabalham em cooperativas agrícolas.
Estudo de caso: Cooperativa Umceren, zona rural de Hesek
A cooperativa Umceren inclui 54 membros de 7 aldeias.
Os membros são desde árabes, curdos e cristãos assírios, com igual participação de homens e mulheres. A cooperativa actua em diversos campos. Ela cultiva trigo e hortaliças em vários hectares de terras, dos quais parte pertence à AANES, e parte é propriedade dos membros da cooperativa. O produto é vendido no mercado. Além da agricultura, o projeto mais importante da cooperativa é a construção de uma escola para as crianças da aldeia. O acesso à educação é difícil para os moradores, pois a escola mais próxima fica a três a quatro quilómetros de distância. No outono e no inverno, quando a chuva inunda as ruas com lama, conduzir nessas distâncias torna-se complicado. Com o apoio do centro cooperativo de Heseke, a cooperativa manteve os custos de construção baixos usando materiais locais e contando com a mão de obra dos seus membros. Um autocarro escolar irá recolher as crianças de oito aldeias e locais para levá-las à escola, enquanto a escola também deve promover actividades e programas de educação para adultos. Outro problema que a cooperativa quer resolver é o abastecimento deficiente de energia eléctrica e água. Duas aldeias não têm acesso a electricidade, então a cooperativa recolhe fundos para adquirir um gerador.
Como funcionam as cooperativas no NES?
Como se formam as cooperativas?
Para iniciar as cooperativas, o Centro de Cooperativas e a Aboriya Jin entram em contacto com as comunas locais, identificam as necessidades da comuna e apresentam o princípio do cooperativismo através de sessões de esclarecimento e formação. O Centro de Cooperativas passou a ter um papel mais pró-ativo na constituição de cooperativas, após reconhecer que o modelo cooperativo era frequentemente utilizado como forma de investimento, e não como forma de desenvolvimento de uma economia local e comunitária. Muitas famílias contribuiriam financeiramente para o início de uma cooperativa. Mas ao invés de se envolverem mais com o trabalho ou desenvolvimento da cooperativa, eles simplesmente arrecadavam os lucros (que acabavam sendo muito baixos para todos os envolvidos, já que o número de “investidores” era muito alto, o que significa que alguns cooperantes recolhiam apenas o equivalente a € 0.82 ou mais por mês).
Para evitar esse tipo de uso indevido do modelo cooperativo, os Centros de Cooperativas regionais e a Aboriya Jin agora tomam a iniciativa de identificar as necessidades dos residentes locais e estabelecer projectos cooperativos de acordo, com foco na integração das famílias mais pobres de uma comuna, dos feridos na guerra contra o ISIS ou a Turquia, ou daqueles que perderam um membro da família.
O tipo de apoio que uma cooperativa recebe para iniciar a sua actividade varia. Elas geralmente recebem, ou obtêm ajuda para adquirir, as ferramentas e produtos necessários para iniciar a actividade escolhida. Para uma cooperativa agrícola, isso poderá ser terra e sementes. Os associados que aderem à cooperativa obtém apoio financeiro para o início das suas actividades, podendo receber até 25% do valor inicial do Centro de Cooperativas. As cooperativas de mulheres que iniciam as suas actividades com a ajuda da Aboriya Jin têm 100% dos custos iniciais cobertos pela Aboriya Jin, de acordo com as necessidades do projecto. Os Centros de Cooperativas e a Aboriya Jin também oferecem formação e fornecem contactos para as cooperativas que procuram parceiros comerciais. Além das formações profissionais e aspectos económicos das cooperativas, a educação visa transmitir os valores políticos e sociais do código cooperativo.
Programas de educação são necessários para a sociedade, em particular para o nosso trabalho, para o cooperativismo. A nossa sociedade perdeu a força dos seus laços sociais, por isso é necessário mudar mentalidades e reavivar a vida comunitária. Nas cooperativas, trabalhamos juntas. É uma forma de construir a unidade do povo.
Mediya, Comissão de gestão do Centro de Cooperativas de Qamishlo
Como lidam as cooperativas com a competição de mercado?
Quando se trata de concorrência de mercado, partes das actividades das cooperativas estão em si mesmas fora do espectro comercial: este é, obviamente, o caso relativo às cooperativas de serviços, mas também às cooperativas agrícolas que podem distribuir partes dos seus produtos directamente para os seus membros. Além disso, quando novas cooperativas são criadas, a sua actividade geralmente responde a necessidades locais que a economia de mercado não atendia até agora. Para garantir que as cooperativas não competem entre si, o Centro de Cooperativas verifica se cada cooperativa cobre diferentes tipos de necessidades e se se complementam na sua actividade:
Não deverá acontecer que uma cooperativa compita com outra. Por exemplo, a Comissão Cooperativo não apoiaria duas cooperativas de pão numa aldeia. A acção é feita de acordo com as necessidades das comunidades locais.
Leyla Yousef, co-presidente da Comissão Cooperativa
Relativamente à concorrência com outras empresas privadas, as cooperativas podem atrair clientes com preços mais baixos – que também visam baixar os preços de mercado em geral. A cooperativa agrícola construída no campo de deslocados internos de Tel Samen, por exemplo, vende os seus produtos directamente aos habitantes do campo pela metade do preço de mercado. Várias cidades construíram, ou estão a construir pequenos mercados que se dedicam à economia cooperativa, para que as cooperativas produtoras não dependam de intermediários que cobrem e façam subir os preços. As cooperativas também podem oferecer preços mais baixos, pois privilegiam o uso de materiais locais, ao invés da importação de mercadorias. De forma mais geral, as cooperativas têm como objectivo atrair associados e clientes, pois representam uma forma de economia que fortalece os laços comunitários e aumenta a autonomia das pessoas no seu dia-a-dia.
Como são divididos os lucros nas cooperativas?
Em primeiro lugar, é preciso mencionar que nem todos os tipos de cooperativas geram lucro. Conforme mencionado anteriormente, as cooperativas de serviços simplesmente prestam um serviço, que não é comercializado. As cooperativas agrícolas podem distribuir parte ou toda a sua produção directamente aos seus membros. Para aqueles que geram ganhos financeiros, os lucros são divididos em quatro partes:
- Uma parte é paga como imposto ao órgão de apoio (por exemplo, Aboriya Jin ou o Centro de Cooperativas local), que é então colocada novamente em uso para desenvolver novas cooperativas. As cooperativas normais pagam um imposto de 5% quando obtêm lucro. Se elas não obtiverem lucro, não terão que pagar o imposto. Para as cooperativas agrícolas que utilizam terras cedidas pela AANES, o imposto chega a 9% e para as que utilizam terras próprias é de 5%. Já para as cooperativas apoiadas pela Aboriya Jin, um imposto de 5% sobre o lucro deve ser pago após 6 meses de actividade para financiar novos projetos.
- Uma parte é reinvestida no desenvolvimento da cooperativa em questão (as directrizes para cooperativas na NES recomendam 25%, mas o valor típico reservado para reinvestimento é de 10%)
- Uma parte é utilizada para o desenvolvimento de projectos locais. Algumas cooperativas estão vinculadas a outras instituições, como por exemplo a Sazîya malbatên şehidan (Organização para Famílias dos Mártires). A organização oferece apoio à cooperativa que por sua vez dá uma parte dos seus lucros a esta organização da sociedade civil, que trabalha com famílias pobres, viúvas, deficientes ou pessoas afectadas pela guerra. Da mesma forma, aquelas ligadas ao movimento feminino Kongra-Star através de Aboriya Jin fornecem uma parte dos seus lucros para apoiar o trabalho entre as mulheres no norte e no leste da Síria. Outros também podem apoiar projetos comunitários locais individuais (veja abaixo).
- E o restante é distribuído entre os membros.
Excepto os impostos, o valor de todas essas partes é decidido por cada cooperativa.
Estudo de caso: Cooperativa de vestuário e cosméticos, Hilleliyah, Qamishlo
O bairro de Hilleliyah em Qamishlo é o lar de várias cooperativas. Uma delas é a cooperativa de vestuário e cosméticos Shilan. A cooperativa Shilan foi fundada em 2016, após várias reuniões de bairro que discutiram as necessidades do distrito e potenciais projectos. Um grupo de mulheres conseguiu juntar fundos para abrir uma nova loja. O objectivo é apoiar as famílias pobres, conseguindo vender roupa e cosméticos a preços mais baixos do que as lojas privadas, facilitando então o acesso a esses bens num bairro localizado longe do mercado central. A cooperativa compra roupas a preço de atacado e revende-as por um preço inferior ao das lojas comuns. Como resultado, a cooperativa gera lucros mínimos. A participação dos membros é motivada principalmente pela ideia de cobrir as necessidades do bairro de forma comunitária. Hoje, a cooperativa tem 22 associados e é administrada por 3 mulheres. O comité de liderança faz o trabalho do dia a dia sem receber dinheiro, pois quer promover o projecto e a economia cooperativa, enquanto os demais membros ajudam quando necessário. Eles recebem um retorno modesto a cada mês, de acordo com o valor investido. Muitos membros da cooperativa Shilan também participam da cooperativa Nesrin, que vende produtos de limpeza, seguindo princípios semelhantes. O plano é construir uma oficina de costura para produzir roupas localmente e criar empregos num sector de fácil acesso às mulheres.
O impacto da invasão da Turquia em 2019 na economia cooperativa
Pouco antes da invasão turca de Sere Kaniye e Tel Abyad em outubro de 2019, ambas as cidades e os seus arredores eram um lar fértil para uma alta concentração de cooperativas. À volta de Sere Kaniye, mais de 12 000 hectares foram entregues a cooperativas agrícolas. Todas as cooperativas coordenavam as suas actividades, algumas especializando-se na produção, outras na compra e venda. A cooperativa Hevgirtin uniu 1250 membros, cultivando cevada em mais de 6000 hectares. Os lucros que os membros dessas cooperativas agrícolas reservaram ao longo de 2015 e 2016 permitiram que abrissem a cooperativa Mesopotâmia, uma padaria semi-automatizada. Essas iniciativas foram pioneiras na economia cooperativa do NES.
A invasão turca em outubro de 2019 e a ocupação contínua de 5000 km2 nas regiões de Sere Kaniye e Tel Abyad destruíram essa economia alternativa em desenvolvimento. As forças apoiadas pela Turquia saquearam propriedades privadas e públicas, empresas e cooperativas (para mais informações, consulte o relatório de dezembro de 2019 da RIC: Guerra da Turquia contra civis). A Padaria Mesopotâmia foi apreendida por facções apoiadas pela Turquia, resultando na perda de máquinas e reservas. Associações de cooperativas agrícolas também foram saqueadas, com a perda total de 800 toneladas de trigo mais 1500 toneladas de fertilizantes de 6 cooperativas na zona rural de Sere Kaniye. O impacto psicológico deve ser considerado ao lado do dano material: a experiência ou ameaça de destruição faz com que qualquer tentativa de construir projetos futuros pareça em vão.
Quando a guerra se aproximou, as pessoas ficaram relutantes em envolverem-se em projectos cooperativos com medo de que o estado turco pudesse destruí-los. Qual é o sentido em trabalhar o solo se o inimigo vai vir e levar tudo? E com a guerra, tudo foi saqueado e destruído.
Ashref, ex-membro do Departamento de Economia de Sere Kaniye
No entanto, as cooperativas desenvolvem-se mesmo entre aqueles que fugiram da guerra. O Centro de Cooperativas tenta estimular a criação de novas aldeias, dando terras aráveis aos habitantes que vivem em campos de deslocados. No interior de Heseke, a cooperativa Kaniya Jin reúne três famílias que fugiram da invasão de Sere Kaniye. Elas cultivam alho e cebola em um hectare de terra.
Ainda assim, é difícil motivar os deslocados em estabelecerem-se num novo lugar. Aqueles que fugiram de Sere Kaniye preferem ficar no campo de deslocados, pois esperam voltar um dia para as suas casas. Em outros casos, portanto, as cooperativas desenvolvem-se directamente dentro dos campos de deslocados internos.
Estudo de caso: Cooperativa agrícola no campo de deslocados internos de Tel Samen, zona rural de Raqqa
O campo de Tel Samen é uma antiga base militar dos EUA convertida em campo IDP (Internal Displaced People/Pessoas Deslocadas Internamente) após a invasão de outubro de 2019, quando as forças americanas se retiraram das regiões orientais do NES para preparar o caminho para o ataque turco. A população do campo de cerca de 700 famílias é composta principalmente por famílias árabes e curdas, juntamente com uma minoria significativa de famílias turcomanas, todas fugidas de Tel Abyad devido à ocupação turca. No início de 2020 a administração do acampamento ajudou a recolher fundos para iniciar a actividade de plantio de diversas hortaliças, com 100 famílias contribuindo financeiramente para o projecto. Seis hectares de terra estão a ser cultivados.
A população do acampamento beneficia de duas formas com a cooperativa.
Em primeiro lugar, oferece aos deslocados internos uma oportunidade de ganhar um salário. Todos os dias, 15 a 20 pessoas de diferentes famílias trabalham para a cooperativa, com cada indivíduo recebendo um salário diário típico de trabalhador agrícola de € 4.82.
Em segundo lugar, todos os habitantes do acampamento podem comprar os produtos da cooperativa pela metade do preço de mercado, permitindo-lhes alimentar as suas famílias. O que resta é vendido no mercado de Raqqa, e os lucros da venda são divididos entre as 100 famílias que contribuíram financeiramente para a cooperativa. Actualmente, a cooperativa está em negociações com o Centro de Cooperativas para expandir a sua actividade e adquirir ovelhas e frangos.
Conclusão
Até hoje, a economia cooperativa do NES ainda está no seu início. O seu desenvolvimento é dificultado por vários aspectos, destacando-se a ameaça de guerra e o baixo nível de escolaridade e sensibilização da população em geral. As cooperativas ainda representam uma parte marginal da economia local quando comparadas à produção, consumo e necessidades gerais de milhões de residentes locais. No entanto, as cooperativas mantêm uma importância especial no NES, pois representam um sistema económico alternativo emergente que visa atender às necessidades económicas e ecológicas urgentes na região:
- diversificar a produção agrícola para se afastar da monocultura;
- desenvolver métodos agrícolas e de construção ecologicamente sustentáveis;
- promoção da auto-suficiência e redução da dependência de produtos importados;
- ajudar as mulheres a ganhar independência económica;
- e oferecer uma perspectiva económica às famílias pobres.
As cooperativas, portanto, desempenham um papel central no projecto político mais amplo em andamento na AANES, e especialmente nos seus objectivos de avançar em direcção à soberania alimentar, economia social e ecológica e igualdade de género.
Tempo e estabilidade são necessários para permitir que este modelo se desenvolva. Como afirma o porta-voz da Comissão de Economia:
Tudo isso é um processo lento e ascendente desde a base. No futuro, avançaremos gradualmente em direcção a uma economia cooperativa. Claro, a guerra é uma possibilidade que pode destruir esses esforços. Esperamos alcançar uma sociedade sem pobres ou ricos, mas uma vida igual para todos.
Walid, porta-voz da Comissão de Economia da AANES
Fontes
As informações apresentadas neste artigo baseiam-se em entrevistas realizadas com os responsáveis pelo desenvolvimento das cooperativas do NES:
- Walid, porta-voz da Comissão de Economia, e Azad, co-presidente de Produção na região de Jazira, agosto de 2019
- Dr. Hassan Betay e Leyla Yousef, co-presidentes da Comissão Cooperativa, agosto de 2019
- Armanc, coordenadora com a Aboriya Jin, ramo económico de Kongra Star, Qamishlo, setembro de 2020
- Firdaws, coordenador do Centro de Cooperativas do Cantão de Qamishlo, setembro de 2020
- Mediya, comissão de gestão do Centro de Cooperativas do Cantão de Qamishlo, setembro de 2020
- Karker, co-presidente do Centro de Cooperativas de Heseke, setembro de 2020
- Ashref, ex-membro da Comissão de Economia de Sere Kaniye, setembro de 2020
- Newroz, coordenador do Centro de Cooperativas do Cantão de Heseke, outubro de 2020
Fonte: Rojava Information Center, 8 de Novembro de 2020
Traduzido e publicado por António Orvalho com o objectivo de dar visibilidade solidária para com o projecto de construção da Região Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES). Saber mais na Plataforma de Solidariedade para com os Povos do Curdistão e RiseUp4Rojava – Portugal.
Webinar ‘Como transitar para um modelo de economia circular?’
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